Canção para o Rio Batateiras (Réquiem ou Balada?)
Por Carlos Rafael
Hoje te visitei e tu estavas agonizando no leito, pois no teu leito não corria uma fiozinho d’água sequer. Lembrei, nostálgico, quando, depois de longas e sábias conversas com Seu Jefferson, proprietário e benfeitor do Sítio Fundão – a tribo urbana, da qual eu fazia parte, mas que era fascinada pelo mato, descia pelas veredas, até enxergar, maravilhada, aquela que era uma das nossas maravilhas: teu pequeno cannion, esculpido pelas tuas correntezas, aparentemente apressadas, mas que , na verdade, eram pacientes pela grandeza da tarefa, realizada através de milhões de anos. Passávamos tardes inteiras banhando-nos nas tuas águas e fartando-nos com as bananas, mangas, ingás e cocos que Seu Jefferson nos autorizava comer. Na volta, sentíamos as almas leves e fagueiras, descendo a acrópole pela escadaria, já com as luzes dos postes acesas, iluminando o centro do Crato.
Passaram-se décadas desde que te visitei pela última vez, quando Seu Jefferson ainda ocupava o posto de Guardião do Sítio e da parte do teu corpo, meu Rio, que repousa naquele santuário ecológico.
Antes, ao lado de Seu Jefferson, dediquei um bom tempo de minhas visitas ao Sítio, manuseando empoeirados documentos cartoriais que tinham celebrados acordos de partilhas de telhas d’água entre os proprietários rurais, verdadeiros régulos, já em meados do século XIX. Seu Jefferson reclamava da água que diminuía. O acordo estava sendo desrespeitado.
Hoje, voltei ao Sítio. A sua entrada, tão bucólica nas minhas reminiscências, a ponto de compará-la a um pórtico de acesso a um mundo mágico e misterioso,- já não é mais a mesma: uma grande fábrica fica-lhe ao lado, tendo-lhe tomado uma grande parte de sua área, agora arroteada e cercada de alambrado. Parte da mata, na entrada do sítio, está estorricada, calcinada que foi por um incêndio criminoso ocorrido poucos dias atrás. Dos males o menor, pois a mata recuperar-se-á com as chuvas de dezembro que se aproximam (a cigarra já começou a cantar). O problema são os piromaníacos irrecuperáveis.
Pior, no entanto, foi ver o teu estado, meu Rio, agonizando no leito, pois teu leito hoje é só de pedras. Pior, ainda, foi saber que a tua agonia não é natural, vítima de um cataclismo à inversa, como se o apocalipse estivesse próximo e o superaquecimento global resolvesse antecipar o fim do mundo. Nem poderia ser também o agourento canto da acauã, que ouvimos lá da mata, enquanto caminhávamos no teu leito seco e Ed Alencar (*), – esse Dom Quixote que insiste em vencer os moinhos “d’água” (quanta coincidência histórica e ao mesmo tempo quantas ironia do destino, meu Rio!) – nos dava o teu diagnóstico. Mas, não! Triste foi saber que tua morte anunciada é por conta da ganância daqueles que, se considerando os donos da terra e aliados do poder, se arvoram a ser donos das águas também.
Vimos como isso vem acontecendo. Tuas nascentes estão sendo desviadas por canos que estupram as entranhas da serra, sugando grande volume do precioso líquido que, de forma tão generosa, a Mãe-Terra oferece indistintamente a todos. Não satisfeitos, antes mesmo das águas molharem teu leito, mais canos e levadas desviam o resto da água que teima escapar do vampirismo.
Lastimável, meu Rio, é saber que tu estais em estertor, e estertorante também está todo um ecossistema que depende diretamente de ti, formada por vegetação ciliar (desde pteridófitas, como samambaias e plantas afins, até árvores de grande porte) e animais silvestres (veados campeiros, tatus, guaxinins, tamanduás, pássaros, cobras etc). Os animais que não podem migrar perecem, tanto por sede e fome como por se tornarem presa fácil de inescrupulosos caçadores. Homens e mulheres, que formam a população ribeirinha, sofrem e nem entendem porque o rio já não é mais aquele de outrora.
Mas, meu Rio, ah, meu Rio! Sua recuperação deste estado crônico é possível, e isso sem nenhuma panacéia ou plano miraculoso. Basta que os pretensos donos de tuas águas, liberem o líquido durante a noite, quando todos estão repousando, comendo, bebendo, contando dinheiro, assistindo televisão, dormindo ou ocupados em atividades nem sempre produtivas ou essenciais. Basta, pois, que liberem as águas, desviadas de ti durante o dia e que as liberem das seis da noite às seis da manhã e, pronto!, tu voltarás a viver e farás com que toda uma cadeia vital também sobreviva.
É fácil, é simples. É questão de inteligência, bom senso e consciência, pois a vida e suas maravilhas são muito maiores do que interesses menores, individuais, oligárquicos.
Vamos te salvar, meu Rio. Agüente firme!
Rio, não vamos chorar! Vamos lutar!
(*) Edmundo Alencar, conhecido por Ed Alencar, é neto de Seu Jefferson e está à frente da campanha para salvar o Sítio Fundão e o Rio Batateiras. Entre nesta campanha. O contato de Ed é (88)9233.7241. Para movimentar a campanha, Ed vem realizando uma série de eventos com vistas à mobilização da sociedade organizada em prol da causa. O próximo será a celebração de uma missa, que acontecerá nesta terça-feira, dia 6 de novembro, às 8 horas da manhã, no leito atualmente seco do Rio Batateiras, localizado no Sítio Fundão, em Crato.